ENTREVISTA – Celeiro mundial de startups com Lindomar Góes Ferreira

No início de janeiro, o amapaense Lindomar Góes Ferreira assumiu a presidência da Associação Brasileira de Startups (ABStartups), uma das protagonistas em iniciativas de fomento à comunidade empreendedora. Com uma longa trajetória no desenvolvimento do mercado na Amazônia, ele chega à liderança da organização trazendo a experiência de quem captou o maior aporte já registrado por uma startup da região – em 2023, a Proesc, edtech idealizada enquanto fazia faculdade, recebeu um investimento de R$ 80 milhões da Square Knowledge Ventures. Cofundador do Tucuju Valley, ecossistema voltado para a formação de empresas de base tecnológica milionárias no Amapá, Ferreira planeja usar sua expertise digital para impulsionar projetos inovadores e criar oportunidades em todo o país. O grande objetivo é transformar o Brasil no principal celeiro de startups do mundo. Em entrevista a Pequenas Empresas & Grandes Negócios, compartilha seus planos para concretizar essa visão.
Por onde começa a sua trajetória como empreendedor?
Nasci em uma vila do Amapá chamada Jarilândia. É um pequeno povoado que fica às margens do rio Jari e separa o Amapá do Pará. Por trás dela é tudo floresta. Então, nasci literalmente no meio da floresta.
Meu pai sempre foi comerciante. Ele trabalhava com regatão, um tipo de atividade que existe na Amazônia na qual as pessoas colocam várias mercadorias no barco e saem vendendo ao longo das cidades que ficam em torno do rio. Depois de um tempo, ele também abriu alguns comércios na região. Essa foi a minha primeira referência de empreendedorismo. Ajudava a pesar açúcar,
pesar farinha, atender clientes… Fazia de tudo um pouco.
Em que momento você passou a observar oportunidades além dessa realidade?
Meus pais não tiveram chance de estudar muito. Então fizeram um pacto de que todos os seus filhos iriam ter essa possibilidade. Isso foi algo muito determinante em nossas vidas. Todos os meus irmãos se formaram em universidades, a maioria deles possui mestrado, e alguns possuem doutorado.
A busca pelos estudos fez com que eu valorizasse a importância do conhecimento e me levou a conhecer realidades diferentes da cidade onde nasci. Tivemos que nos mudar algumas vezes, pois a
escola local só ia até a terceira série. Passamos por outras cidades da região, como Vitória do Jari e
Santana. Terminei me formando em matemática pela Universidade Federal do Amapá, em Macapá.
Anos depois, fui para São Paulo para fazer mestrado [no Instituto de Pesquisas Tecnológicas].
De que forma você começou a se envolver com os movimentos de tecnologia?
Enquanto cursavaafaculdade, comecei a dar aulas de matemática em algumas escolas da região. Ao
mesmo tempo, fiz cursos de tecnologia e programação. Foi nesse momento que me deparei com os
desafios que fazem parte da vida de um professor. Tinha cerca de 500 alunos. Era uma quantidade
enorme de informação para processar. Então, comecei a programar uma espécie de agenda digital para
organizar minhas atividades. Outros colegas se interessaram pelo modelo e pediram para usar o sistema. No boca a boca, a solução foi adotada por 40 escolas locais. Isso foi na segunda metade da década de 1990. Estou falando de um período em que não existia internet, nem mesmo pendrive. Criei o código-fonte e salvei os arquivos compactados em três disquetes, que eram usados para instalar o software nos colégios.
Quando percebeu que essa solução poderia virar um negócio?
Sempre fui apaixonado por esse mundo de inovação e tecnologia.
Acompanhava as revistas da época e gostava muito das histórias de empresários como Bill Gates, Larry
Page e Steve Jobs, que estavam apenas no início de suas trajetórias, mas já faziam coisas fantásticas. Isso me inspirava muito. Queria construir algo grande, assim como essas pessoas que admirava.
O acesso à internet e à informação era muito restrito no Amapá. A gente
não sabia nem o que era uma startup. Mas percebi que existia um interesse pela solução que havia criado. Então começamos a desenvolver novas funcionalidades, como cadastro de alunos, matrículas, gestão de documentos, processamento de boletins e atas de resultados finais. A partir daí, fomos desenvolvendo o modelo de negócio da empresa. Abrimos o CNPJ em 2008.
Quais foram os passos seguintes?
Com a popularização da internet, começamos a nos conectar com outros ecossistemas e iniciativas de apoio ao empreendedorismo. Passamos a trocar mais figurinhas com startups e organizar encontros, que mais tarde descobriríamos que eram meetups. Isso começou a dar origem à comunidade hoje conhecida como Tucuju Valley, que reúne empreendedores do Amapá. O movimento começou a
ganhar força por volta de 2014, mais ou menos no momento em que o WhatsApp cresceu no Brasil.
Essa expansão da nossa rede de contatos abriu oportunidades para participar em bootcamps e programas de aceleração, comoo InovAtiva. Fomos refinando nossos modelos de suporte, atendimento e experiência do cliente. A partir daí, começamos a buscar investidores para escalar a operação. Até então, todo o nosso crescimento havia sido feito na base do bootstrap [com recursos próprios]. Além de ser saudável financeiramente, a Proesc tinha potencial para ser o maior ERP [sistema de gestão] do segmento. Sabíamos que isso poderia ser um diferencial. No início de 2023, fechamos uma rodada de R$ 8 milhões com o Square [Square Knowledge Ventures], com um valuation de R$ 80 milhões. Foi
o maior aporte já recebido por uma startup da Amazônia.
Como começou a sua aproximação com a ABStartups?
Descobrimos que existiam metodologias para criar startups de sucesso e começamos a trazer de volta esse conhecimento para empresas locais. A gente já vinha trabalhando o fortalecimento da comunidade
com a Amapatec [Associação Amapaense de Tecnologia] e programas realizados em parceria com o Sebrae [Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas]. Nos aproximamos mais da ABStartups durante as edições do StartupON [evento itinerante realizado pela ABStartups] em Macapá, que foram fantásticas. Começamos a levar delegações de empreendedores para o CASE [conferência nacional organizada pela associação]. Em 2022, fomos eleitos como a comunidade revelação do Brasil pelo Startups Awards. Algum tempo depois, a Ingrid Barth, então presidente da ABStartups, me enviou uma mensagem para nos parabenizar sobre o aporte que a Proesc havia recebido. Ela disse que o mundo precisava saber desse marco atingido por uma startup da Amazônia e se colocou à disposição para nos ajudar na divulgação entre os meios de comunicação.
E como esse relacionamento evoluiu para o convite para concorrer à presidência da associação?
Fui tomar um café com a Ingrid em São Paulo e a convidei para palestrar no Startup Day do Amapá e conhecer outras empresas e empreendedores locais. Ela aceitou e se encantou com o nosso ecossistema. Contou que tinha acabado de assumir a liderança dos encontros de startups do G20 [programa conhecido como Startup20], e que um deles ia ser na Amazônia. Perguntei se teria coragem de fazer no Amapá. Ela topou o desafio. O evento foi maravilhoso. Recebemos 16 delegações de vários países – os
hotéis ficaram lotados. Foi algo transformador para o estado e que estreitou muito a nossa relação com
a ABStartups. A Ingrid terminou me convidando para concorrer à presidência da associação, pois havíamos atingido resultados incríveis aqui na região. Não tinha certeza se era o melhor momento, pois havia terminado de assumir a presidência da Amapatec. Mas comecei a pensar
em todos os impactos positivos que geramos para as startups do nosso ecossistema. Achei que era uma
grande oportunidade para apoiar mais empreendedores da Amazônia e de todo o Brasil.
A eleição da ABStartups teve a concorrência da chapa DSPS [De Startups para Startups]. A campanha da oposição foi marcada por uma série de acusações sobre falta de transparência da gestão anterior, que apoiou a sua candidatura. Como enxerga essas críticas?
Já sabia que existia uma oposição. Muitas dessas pessoas são profissionaisquejá trabalharamnaABStartups e passaram a ser críticos após deixarem a associação. Sobre esse tema,
a ABStartups mantém um portal de transparência que compartilha todas as informações e ações realizadas pela organização. Também foi colocado em pauta um layoff [corte/redução no quadro de funcionários] que havia sido realizado em 2023. Entendo que a ABStartups, assim
como qualquer associação, também funciona como uma empresa, que opera a partir de uma estrutura de despesas e receitas. Quando as despesas são maiores do que as receitas, você precisa reduzir
os custos, certo? Mas, até o momento, estou falando sobre o que acompanhei na mídia. A partir de agora, vou analisar melhor como estão todos os números da associação. De qualquer maneira, a oposição faz parte do processo democrático. O problema é que a campanha teve diversos pontos de desinformação. O discurso foi muito focado em críticas pessoais. Do nosso lado, escolhemos falar mais sobre projetos e propostas que tivessem capacidade de transformar o Brasil em um país mais inovador.
Quais são os planos para atingir esse objetivo? Como avalia o cenário atual?
O Brasil é atualmente o quinto maior ecossistema de startups do mundo. Somos referência global em fintechs e temos uma forte presença no setor de educação. Mas ainda existe um longo caminho para elevar o nosso patamar de inovação. A maior parte das empresas e das oportunidades
ainda está concentrada no Sudeste. Nos últimos anos, tenho participado de eventos em todoopaís, que
me permitiram conhecer diversos ecossistemas regionais. Entendo que todas as regiões têm seus desafios, mas que alguns são maiores. É o caso do Norte, do Nordeste e do CentroOeste. A Amazônia, por exemplo, reúne apenas 5% das startups brasileiras. A partir desse cenário, queremos
fortalecer microecossistemas de inovação, levando conhecimento sobre temas como fundraising, escalabilidade e internacionalização para empreendedores de regiões menos favorecidas. A ideia é começar a construir uma trajetória que nos leve ao sonho grande de ser o ecossistema mais inovador do mundo.
Você comentou sobre a Amazônia. Tem um plano específico para a região?
Neste ano, a COP30 será realizada no Pará. Isso abre uma oportunidade enorme de alavancar o cenário de inovação da Amazônia. Não podemos esquecer da importância fundamental que a floresta tem nas
questões de preservação ambiental e no combate à crise climática. Mas também precisamos lembrar
que existem pessoas que moram debaixo da copa das árvores. E que essas pessoas precisam de emprego e inovação para melhorar suas vidas. Empreender em qualquer lugar do Brasil é um grande desafio. Mas
empreender na Amazônia é mais difícil ainda. Com exceção de Manaus, a infraestrutura de negócios
da região é escassa. É uma realidade muito distante dos hubs de inovação, dos parques tecnológicos
e dos fundos de investimento que existem em outros locais do Brasil. As startups que surgem na região já precisam nascer vendendo, pois não existe uma rede de financiamento consolidada para
apostar em projetos de longo prazo. A abordagem que utilizamos na Amapatec, por exemplo, é focada
nesse aspecto da resiliência. Temos alcançado bons resultados até o momento. A partir daí, queremos criar uma geração de startups locais e replicar o modelo para outros ecossistemas que atuam em
contextos de escassez.
A partir desse posicionamento, qual deveria ser o foco de uma organização como a ABStartups? O desenvolvimento do ecossistema como um todo? O apoio aos associados? Quem é o principal stakeholder da associação, na sua avaliação?
Entendo que a ABStartups tem vários clientes e atores do ecossistema que precisa apoiar. Do ponto de
vista das startups, a prioridade é facilitar o acesso ao conhecimento e gerar oportunidades de negócio. Essa abordagem precisa ser casada: você não pode gerar a oportunidade sem oferecer o conhecimento antes. Não adianta colocar dinheiro no bolso do empreendedor se ele não entende conceitos fundamentais de gestão financeira, marketing e vendas. Mas, respondendo à sua pergunta, acredito que a ABStartups só existe por causa dos associados. Então, qualquer movimento, do apoio às ações da comunidade ao incentivo da presença dos fundos de investimento em determinada região, deve ter como objetivo final criar e fortalecer as startups brasileiras.
Qual é o legado que gostaria de deixar?
Antes de assumir a ABStartups, eu já vinha participando de um trabalho de fomento no Amapá que transbordou para toda a região amazônica. Por causa das iniciativas que criamos, o estado passou a abrigar startups que são referência em suas áreas de atuação. Além da Proesc, temos a OrçaFascio, que é líder em orçamento de obras, a Tributei, plataforma de tributação com atuação nacional, e a Tuxtu, referência em gestão ambiental. No primeiro momento, o meu grande propósito era transformar
o Amapá no ecossistema mais inovador da Amazônia. A partir da consolidação desse movimento, comecei a sonhar em criar a próxima geração de milionários de tecnologia da região, pois acredito que é importante atrair as pessoas pela geração de riqueza. Agora, com a ABStartups, o meu propósito passou a ser nacional. Nesse sentido, o legado que eu gostaria de deixar é fortalecer essa esperança de ver o Brasil se transformar no mais inovador ecossistema de startups do mundo. Espero poder contribuir com
meus tijolinhos para fazer o país subir mais alguns degraus nessa direção.
Fonte: Revista Pequenas Empresas e Grandes Negócios
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