Spoan: uma cientista descobre doença no sertão

Silvana Santos ainda sabe de cor a casa e o nome de cada um dos moradores de Serrinha dos Pintos que perderam na infância a capacidade de andar.
As filhas de dona Loló na entrada da cidade, Rejane no recuo da estrada, Marquinhos logo depois do posto de gasolina, Paulinha em frente à escola…
Foi nesta cidade de menos de 5 mil habitantes no sertão do Rio Grande do Norte que a bióloga e doutora em genética descobriu, estudou e batizou uma doença genética rara até então desconhecida no mundo: a síndrome Spoan.
Causada por uma mutação genética que pode ser rastreada até os primeiros colonizadores a explorarem o sertão do Brasil, a síndrome afeta o sistema nervoso e causa um progressivo enrijecimento e enfraquecimento das pernas e dos braços.
Nos afetados, os olhos apresentam um movimento rápido e involuntário.
Para que a síndrome se manifeste, a pessoa precisa herdar obrigatoriamente um gene com a mutação tanto da mãe quanto do pai.
Isso significa que, se os pais forem parentes e compartilharem a mesma herança genética, a chance de eles terem o mesmo gene mutado aumenta consideravelmente.

Por estar distante de qualquer metrópole e isolada em uma serra com pouco histórico de novas pessoas chegando, em Serrinha dos Pintos é comum que os moradores tenham algum grau – ainda que distante – de parentesco.
Muitos casamentos, em alguns casos mesmo sem as pessoas saberem, ocorrem entre primos, fenômeno que interessa geneticistas como Silvana.
O Nordeste do Brasil, sobretudo nas cidades do interior, é a região onde essas uniões consanguíneas são mais comuns no país.
Em algumas cidades, a taxa se aproxima de países do Oriente Médio, onde esse tipo de relação são parte da cultura e até incentivadas.
Também é no Nordeste onde estão concentrados mais casos de doenças raras genéticas, muitas ainda sem nome.
Até a chegada de Silvana, que se mudou e se apaixonou pela região, as famílias do Alto Oeste Potiguar, onde fica Serrinha, buscavam explicações para a doença que só existia ali.
Hoje, os moradores falam de Spoan e de genética com autoridade e firmeza, explicando que o termo “aleijados”, antes comumente usado, ficou no passado.
“Ela trouxe um diagnóstico que a gente não tinha. [Com a pesquisa], começaram a chegar pessoas, recursos, cadeiras de rodas…”, lembra Marcos Queiroz, o Marquinhos, um dos pacientes com Spoan.
A coincidente descoberta

“Lá tem um monte de gente que não anda, mas ninguém sabe o que é”.
Foi isso que a geneticista Silvana Santos ouviu de seus vizinhos de rua, em São Paulo, sobre a cidade de onde vinham: Serrinha dos Pintos.
As casas espalhadas na vizinhança paulistana eram ocupadas por uma mesma família, muitos deles primos de diferentes graus casados entre si.
Na época, final dos anos 1990, Silvana fazia um doutorado na Universidade de São Paulo (USP) com o intuito de pesquisar justamente como casais de primos explicavam a origem de algumas doenças familiares.
“Minha ideia era entender como percebiam a genética em uniões consanguíneas, e comecei a testar meus questionários com eles, que viraram meus amigos. Eu não imaginava que estava em frente a uma doença desconhecida”, lembra Silvana.
Mas ela estava.
O quadro sem diagnóstico que chamava a atenção era o de Zirlândia, filha de um dos casais vizinhos.
Logo nos primeiros anos de vida, os olhos de “Zi”, como era chamada pela família, apresentavam um movimento rápido e involuntário.
Com o tempo, os sintomas evoluíram para dificuldade em andar e perda motora grave.
Suas pernas e braços atrofiaram, e Zi passou a usar uma cadeira de rodas e a precisar de ajuda com tarefas básicas.
Como Silvana e uma equipe de pesquisadores descobririam mais tarde, eram sintomas de uma doença que não havia registro na literatura médica.
Os anos de análise, que incluiram a mudança definitiva de Silvana para o Nordeste, revelaram 82 casos de síndrome Spoan no mundo.
Desses, 70 se concentram em cidades vizinhas no Alto Oeste Potiguar, 18 deles em Serrinha dos Pintos.

Serrinha dos Pintos: um universo à parte
Ao ser convidada pelos vizinhos, Silvana decidiu conhecer a cidade durante um período de férias, junto às duas filhas pequenas.
Ela conta sobre a chegada como o acesso a um “universo à parte”, não só pela beleza da caatinga esverdeada e das montanhas que compõem a Serra de Martins, mas também pelo quadro genético raro que parecia existir ali.
Quanto mais caminhava e conversava com os moradores, mais ela se surpreendia com um fenômeno que era muito mais comum do que imaginava: “Era todo mundo casado primo com primo”.
As explicações para tantas relações endogâmicas na região, além do isolamento geográfico, passavam pela crença de que esse tipo de casamento é mais duradouro.
Também a rede de apoio ao redor do casal se mostrava mais robusta, concluíram as pesquisas feitas por Silvana.
Em muitos casos, porém, não queria dizer que as pessoas conscientemente buscassem esse tipo de união.
“É que aqui em Serrinha todo mundo é primo se você for buscar”, conta a recém-casada Larissa Queiroz, 25 anos, que só descobriu estar namorando um primo após meses de relacionamento.
Em geral, o casamento entre pessoas de uma mesma família é bastante comum no mundo, com estimativas em torno dos 10%.
E os filhos dos casais, na maioria dos casos, não nascem com deficiência, explicam os geneticistas.
Se o casal não é aparentado, a chance de ter um bebê com anomalia congênita, doença genética rara ou deficiência intelectual gira entre 2% e 3%, explica o geneticista Luzivan Costa Reis, pesquisador na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Caso sejam primos, a probabilidade fica entre 5% e 6% a cada gestação.
“Isso acontece em razão do aumento da probabilidade dos genitores terem uma mesma variante patogênica [mutação], que está presente na história familiar do casal.”
Isso quer dizer que, quando uma população tem pessoas com alguma mutação genética e casa entre si, os riscos para as doenças raras aumentam.
E era justamente isso o que estava acontecendo em Serrinha dos Pintos.

As pesquisas nos anos seguintes mostrariam que, na cidade, mais de 30% dos casais eram consanguíneos – e desses, um terço possuía ao menos um filho com deficiência.
Isso faz de Serrinha a segunda cidade do Brasil com maior índice de casamentos entre parentes, entre as já estudadas por geneticistas, mostra a pesquisa de Luzivan Reis.
O Censo Nacional de Isolados (Ceniso), um levantamento do Instituto Nacional de Genética Médica Populacional (Inagemp) que identifica locais com alta frequência de doenças genéticas ou anomalias congênitas, mostra que o Nordeste é a região do país onde há mais casos de populações afetadas.
“O Brasil é um país muito heterogêneo. Somos uma espécie de ‘caldeirão genético’, então é natural que tenhamos uma diversidade também de doenças trazidas por mutações dos povos que formaram essa população”, diz Lavínia Schuler-Faccini, coordenadora do Ceniso.

A inclusão da Spoan e das cidades do sertão do Rio Grande do Norte nesse mapa levou alívio às famílias que buscavam por respostas.
“Nós vivíamos no escuro. A luz só chegou quando foi descoberta a causa, que era um problema genético e degenerativo. Foi um alívio”, lembra a agricultora Elenara Queiroz, mãe da Paulinha, uma das diagnosticadas com a doença.
A família chegou a viajar por cidades no Estado para tentar entender o quadro da jovem, descartando diagnósticos como o de paralisia infantil.
Embora o quadro não tenha cura, para a mãe, saber “o que esperar” da síndrome foi como soltar um suspiro longo depois de muito tempo prendendo a respiração.
Uma chance de conhecer e atender melhor às necessidades de Paulinha, e também de um planejamento familiar para as próximas gerações.
Mutação genética e o velho Maximiano
A pesquisa do grupo de Silvana mostrou que a mutação consiste na perda de um pequeno pedaço de material genético em uma região específica do cromossomo 11, chamada 11q13.
A perda faz com que o gene KLC2, que produz uma proteína importante para o transporte de substâncias dentro dos neurônios, funcione de maneira exagerada.
Quando Silvana iniciou suas entrevistas e a pesquisa de campo para entender como a população explicava, os moradores muitas vezes relacionavam a doença a uma figura do passado, um homem conhecido como “Velho Maximiano”.
“Na época, diziam que a causa era uma sífilis hereditária que vinha do Maximiano, um homem da família da gente, um velho raparigueiro [mulherengo]”, conta o agricultor Manoel Firmino, que é pai de Rejane, uma das pacientes com Spoan na cidade.
A sífilis não tinha qualquer relação com a síndrome Spoan, mas a ideia que os moradores repetiam possuía, sim, uma explicação histórica.
“Antigamente, a sífilis não tinha tratamento, e quem pegava podia inclusive ter perda motora e parar de andar. Então essa ideia de que a sífilis poderia estar causando essa doença. Não é uma ideia completamente sem sentido – embora não tenha relação com a Spoan, ela tem uma origem na história da ciência também”, diz Silvana.
Recomeço
As pesquisadoras confirmam a descrição de Maria Inês de Queiroz, mãe de dois homens com Síndrome Spoan, Marcos e Francisco, sobre a vida há algumas décadas.
Famílias que não tinham condições de buscar por cadeiras de rodas em cidades mais urbanizadas, como Natal, não tinham outra opção senão manter os parentes com a síndrome em uma cama ou no chão.
Como a Spoan causa atrofias musculares e deformidades no corpo, em alguns casos, não havia posição que acomodasse as pessoas com deficiências mais severas em um sofá ou cadeira.
Desde a descoberta, não houve avanços significativos sobre uma cura ou estabilização da Spoan.
“A falta de investimento em pesquisas sobre o tema dificulta as descobertas”, avalia Silvana, que reforça a existência de doenças ainda desconhecidas no sertão nordestino.
Mas o acompanhamento dos que possuem a síndrome possibilitou alguns avanços para as comunidades do Alto Oeste Potiguar.

A primeira delas, lembra Rejane, era o modo como as pessoas tratam os que possuíam a síndrome. “Antigamente os mais velhos chamavam de aleijado. Nem deficiente era.”
Hoje, o termo pejorativo ficou para trás. Em vez dele, é explicado que eles “têm Spoan” – ou, como Silvana prefere, são os “spoanzinhos”.
A chegada das cadeiras de roda contribuiu não só para a independência de quem tem Spoan, mas também para impedir que o corpo fique curvado e as deformações se tornem muito severas.
Com avanços na tecnologia e nas pesquisas de Claudia no campo da terapia ocupacional, já foi possível dar uma versão motorizada da cadeira para vários pacientes.
Por Redação i9Brasil